Caçadores de Reprovações #3: Outubro!

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O Caçadores de Reprovações foi bem recebido e continuará sendo o seu quadro mensal de revisão do My Light Novel, desde pontuação até narração, utilizando trechos de pérolas reprovadas. Nessa semana, temos prosas muito diferentes e fresquinhas pra você no nosso cardápio: uma envolvendo contadores e espadas; a outra, a respeito da misteriosa sombra portadora de uma foice.

O CR falará sobre primeiras páginas, oscilação de tempo verbal, pontuação, vírgulas, descrições, e problemas de construção de parágrafos e frases. Partiu descobrir as soluções para esses problemas? Então pega seu almoço de domingo e aquele suco natural bem light: você acabou de entrar na mira dos Caçadores de Reprovações!


O nome da obra foi modificado para não levar a maiores constrangimentos. Todos os dados dos 
autores foram omitidos e a privacidade dos mesmos será protegida.




1. PRIMEIRAS PÁGINAS & INTERROGAÇÕES



Certo, vamos com calma. Temos muita coisa para discutir no decorrer desses quatro diálogos que tomam quase uma página inteira, sem qualquer descrição para contextualizar o leitor acerca do ambiente. Já dissemos isso em algum lugar, mas vamos ressaltar novamente aqui: sua primeira página deve prender o leitor. Melhor do que isso, tome como regra universal: tudo o que vem primeiro deve ser o mais importante.

Suponhamos que você deseje escrever uma saga de cinco livros. Para que alguém leia todos os cinco, ela precisa gostar, antes de tudo, do primeiro. E, para que alguém chegue a ler o primeiro livro completo, é preciso que a primeira metade dele seja interessante. E, para que alguém leia toda a primeira metade, o primeiro capítulo deve ser muito bom. E, por fim, para que alguém leia todo o seu primeiro capítulo, sua primeira página deve chamar a atenção

É na página inicial em que você deve dar o tom da sua história. Mas, calma! Não estou falando que você tem que falar de como o seu mundo nasceu, cresceu e morreu; de como seus personagens são, dos anseios do seu vilão ou de qualquer outra coisa que só deva aparecer mais pra frente. Quando falamos de tom, estamos conversando sobre a maneira que a sua história será conduzida

Aqui vou propor um exercício para você: leia a primeira página do primeiro capítulo de A Borboleta na Tormenta e faça o mesmo com Sociedade dos Magos. Repare como, mesmo na primeira página, você já entra em contato com a atmosfera que permeará a história. É disso que estamos falando aqui. Quando não há esse contato com o todo da obra, ou muito menos um estilo narrativo consolidado, tudo parece muito sem sal. Um diálogo que poderia parecer bacana na cabeça do escritor, ao ser passado pro papel, se torna entediante, aparentemente sem propósito. E quando ele está na primeira página, isso fica muito pior.

Agora vamos mudar um pouco de foco. Na imagem de cima, repare que há algumas marcações em itálico. Para facilitar sua vida, vou colocá-las aqui e você pensa no problema delas: 

pelo povo e por justiça
fracos e de corações maldosos
período imenso de paz e prosperidade
o príncipe e herdeiro legítimo do rei
seu pai, estava ansioso e confiante 
a armadura prateada e de capa branca 
o símbolo da paz e justiça do reino 

Caso não tenha percebido o problema, a gente vai conversar sobre isso agora. Descrições tendem a ser uma das partes mais difíceis de escrever, avaliar e revisar. Há diversas formas de fazer e, por isso, também há diversas formas de não fazer. Elas têm que tomar a forma da narrativa e, ainda mais, tomar a forma da situação. Nesse caso, é a descrição de um acontecimento através do diálogo de um dos personagens. Baseado nisso, você poderia argumentar que essa repetição é característica do diálogo falado e que não tem problema deixar esse tipo de coisa, afinal, traria mais verossimilhança. Mas o buraco é um pouco mais fundo que isso.

Perceba que todas essa sete frases, dispostas em treze linhas (quase uma razão de uma repetição a cada duas linhas), têm a mesma estrutura: [alguma coisa] e [outra coisa relacionada com a primeira]. Não somente nesse exemplo mais evidente, mas a repetição de estruturas descritivas é algo extremamente nocivo e que nos mostra algo muito provável: o autor não tem domínio sobre descrições e, por isso, talvez não tenha colocado elas no começo justamente por entender que é melhor com diálogos do que com descrições. Quer ver como podemos provar isso?

No terceiro diálogo, repare no grande trecho em vermelho. Ele é o que caracterizamos como uma descrição-roteiro, a qual já falamos inúmeras vezes por aqui também. Isso é clássico de autor iniciante que não tem experiência com outro tipo de escrita ou não tem referências suficientes para consolidar um estilo próprio. 

Para fechar esse trecho, vamos voltar lá pra cima e falar um pouco de gramática. Em: "cada um deles escolhidos pelo próprio rei após passarem por testes quase impossíveis para os fracos", os verbos deverão concordar no singular. Pense comigo: estamos falando de cada um deles. Ou seja, uma pessoa, dentre tantas. Por isso, a frase correta seria: cada um deles, escolhido pelo próprio rei após passar por testes quase impossíveis para os fracos (...).



Agora vamos para uma questão que você já deveria ter se acostumado até aqui, se já leu, pelo menos, os dois outros Caçadores de Reprovações: as vírgulas. Desde o fragmento anterior, você percebeu que algumas vírgulas estão com marcadores azuis, enquanto outras estão grifadas de amarelo. Todas as vírgulas azuis são aquelas que, se fossem substituídas por pontos finais, criariam um parágrafo mais interessante e próximo da estrutura original. Todavia, aquelas de amarelo não têm razão pra existir: devem ser removidas o quanto antes.

Na postagem do Caçadores de Reprovações do mês passado, assim como na postagem específica sobre parágrafos, a gente deu uma conversada sobre tópicos frasais. Mas vamos retomar esse assunto um pouco para que possamos entender o motivo da marcação das vírgulas. Para isso, peguemos o fim do diálogo que abre a primeira imagem:

— (...) Mas [virg] infelizmente, o príncipe falhou no teste, e naquele dia a oposição, composta por nobres corruptos, percebeu a decepção no rosto do rei e a raiva crescente na alma do príncipe.

Você já deve ter percebido que um dos motivos da segunda vírgula estar marcada é justamente o excesso de vírgulas na frase. Mas há ainda um outro ponto: há um excerto que faz a ligação entre o parágrafo anterior e introduz um novo questionamento. Ou seja, ele faz mais ou menos a função de um tópico frasal no parágrafo. Isso quer dizer, então, que você deve começar a tratar seus diálogos como parágrafos?

Exatamente. Afinal de contas, eles são mesmo parágrafos. Você só vai estar utilizando a lógica para manter seu texto mais polido e aceitável. Quer ver? Vamos tomar aquele trecho de exemplo e fingir que ele é um parágrafo. Vou até tirar o travessão para você ver melhor.

[Mas, infelizmente, o príncipe falhou no teste,] e naquele dia a oposição, composta por nobres corruptos, percebeu a decepção no rosto do rei e a raiva crescente na alma do príncipe.

Perceba que o trecho entre colchetes é a introdução do que virá a seguir. É o acontecimento que une o que veio antes e introduz o que virá depois. Então, vamos imaginar que ele é nosso tópico frasal. A frase fica (removendo também o "E"; ele é desnecessário para entender a relação de causa- consequência aqui):

Mas, infelizmente, o príncipe falhou no teste. Naquele dia a oposição, composta por nobres corruptos, percebeu a decepção no rosto do rei e a raiva crescente na alma do príncipe.

Mas a frase ainda não está muito correta. Precisamos adicionar uma vírgula depois de "Naquele dia", pois ele está deslocado na oração. Assim sendo, temos um novo parágrafo:

Mas, infelizmente, o príncipe falhou no teste. Naquele dia, a oposição, composta por nobres corruptos, percebeu a decepção no rosto do rei e a raiva crescente na alma do príncipe.


Muito melhor, não? E, para fechar essa novel brilhantemente: por favor, usem interrogações quando fizerem perguntas.

Postagens recomendadas?

OrtografiaDicas Rápidas da Tany 
Pontuação: Vírgulas
DescriçõesDicas Básicas + Exposição
DiálogosDicas Básicas
Narração:  Parágrafos


2. OSCILAÇÕES & PONTOS DE VISTA



Ufa, dessa vez o texto está mais claro e, aparentemente, com menos problemas. Mas nem por isso ele está livre dos problemas básicos que assolam os iniciantes. Primeiro: repare nos verbos em azul e em vermelho. Os primeiros estão no passado; outros, no futuro. A oscilação verbal normalmente pode se dar por dois fatores: um, o escritor não se atentou ao revisar a obra depois de terminá-la, e dois, o escritor estava tão imerso em sua própria história que se colocou como o personagem, passando a não ter mais o distanciamento de escritor-personagem que a gente espera.

Mas o interessante é que essa oscilação continua, ainda que de outras formas. No trecho "Velhas e maltrapilhas bandeiras", a construção formulada é bem característica das prosas púrpuras (ou puxadas pra ela), com toda a escolha de palavras mais rebuscada e a inversão da ordem sujeito + predicado, fazendo predicado + sujeito (bandeiras velhas e maltrapilhas -> maltrapilhas e velhas bandeiras). Por aí já conseguimos entender que a história parece seguir por um tom um pouco mais sério.

Então, chegamos a um ponto que merece ser mencionado. Vamos dar uma olhada nesse trecho:

As grandes pausas entre uma tocha e outra formavam grandes vãos de escuridão - o que dificultava a visualização dos brasões nas bandeiras, tornando-as quase vultos, as vezes, elas pareciam demônios flutuando.

Espera um pouco. Somente a visualização dos brasões nas bandeiras tornava as bandeiras parecidas com vultos? Ou o ponto principal é que as bandeiras se tornavam vultos? E se as bandeiras se tornavam vultos, por que não falar diretamente isso? Veja, vamos omitir essa informação e reformular a frase, aplicando a lógica das vírgulas e das frases explicativas:

As grandes pausas entre uma tocha e outra formavam grandes vãos de escuridão - o que dificultava a visualização das bandeiras, tornando-as quase vultos. [ponto, conclusão] Às vezes, elas pareciam demônios flutuando.

Uma mudança tão simples que deixou a frase mais concisa, assim como o tudo o que vimos até agora, e passa melhor a mensagem. Aliás, tão concisa que chega a ser angustiante. Quando falamos que uma prosa precisa dizer somente o necessário, não estamos falando realmente que você só tem que falar o que pode ser visualizado objetivamente todo o tempo. Lembre-se: contextualização é a palavra. Contextualize, dê um plano de fundo, então solte o leitor para que ele possa imaginar. Mas, por favor, brinque também com as palavras. Crie o ambiente. Faça a gente se sentir nele.




Certo, essa parte é bem legal. Vou propor um desafio para você. Me diga quem executou a ação: a guerreira ou a criatura. Esse exercício, ao contrário dos outros, eu deixo para você entender e modificar a frase como quiser para fazer do sujeito quem você achar melhor. É ótimo fazer esse tipo de coisa, assim dá para notar melhor a razão de necessitar entender a construção de parágrafos e não ser tão prolixo na escrita.

Primeiro excerto: A figura estava em pé... Na parede. Seu negro vestido longo era tão maltratado e rasgado quanto os estandartes. Por sorte, estava de elmo e túnica, não gostaria de mostrar seu medo ao invasor que caçava.

Quem era o invasor e quem não gostaria de mostrar seu medo a ele?

Segundo excerto: A guerreira sacou de relance as duas lâminas, demonstrando ter notado a presença da criatura, mas ela permaneceu quieta.

Quem permaneceu quieta? A guerreira, ao sacar as lâminas; ou a criatura?


Agora, para finalizar a postagem. 

Ela começou a se mover, andou graciosamente da parede ao chão. Ao parar no meio do corredor — não sabe-se de onde — o reflexo gélido de uma foice surgiu atrás da criatura. A lâmina era como uma lua minguante, tanto no formato quanto no brilho. 
Ana era o seu nome. Não era mistério, esta (uma pontuação rápida: em narrações do passado, opte por usar "aquela/aquele/aquilo", pois essas palavras denotam um espaço maior de tempo [presente-passado] do que esta/este/isto e esse/essa/isso) lenda viva era conhecida em todos os nove cantos do deserto de Atlal.

Quando o autor insere um comentário na narrativa, prosseguindo a mesma normalmente depois dele, sempre esse comentário dirá respeito ao que veio antes. Nesse caso, temos que: não se sabe de onde, a criatura veio parar no meio do corredor. Mas, espera, a guerreira não tinha visto o lugar em que a criatura se encontrava? Pois é.

Nesse caso, o comentário deveria ter vindo depois de "o reflexo gélido de uma foice surgiu atrás da criatura", para que tivéssemos a relação: o reflexo da foice surgiu não se sabe (ou sabia) de onde, o que é muito mais condizente com o trecho.

As Recomendadas Postagens do Irmão de Vosso Pai

OrtografiaDicas Rápidas da Tany 
PontuaçãoVírgulas
Descrições: Perigos da Caverna
DiálogosDicas Básicas
Narração: Tipos de Prosa


Críticas, comentários e sugestões são especialmente bem-vindos! O que achou do quadro desse mês? Tem alguma coisa para falar sobre os textos? Achou algum erro que você também pode estar cometendo? Sinta-se livre para comentar!

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2 comentários

  1. Mais uma postagem excelente :v. Ah, parabéns (atrasado) pelas 400 mil visualizações! ^^

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    1. Muito obrigado, Anônimo! Fico muito feliz que tenha gostado da postagem, e toda a equipe agradece a gentileza das congratulações!

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