Uma Jornada de Natal: Os Extremos Descritivos – Segunda Parada

0

Após embarcar mais uma vez no Expresso Descritivo, Ferona percebe que o ar-condicionado está um pouco mais frio do que antes. Na verdade, não é só ele quem sente frio: cobertas de uma fina camada de neve, todas as poltronas também anseiam por um cobertor.

— Olha, veja só quem vem lá! Muito aguardei vossa chegada! Venha, sente-se ao meu lado. Aqui na poltrona, pegue o casaquinho. Temos muito o que conversar.

Aproximando-se da figura gordinha e um tanto amigável, o escritor agradece com um aceno de cabeça e pega o casaco, vestindo-o em seguida. Entretanto, a roupa que parecia pequena acaba como um grande vestido marrom, nada agradável de vestir. Mas tem um problema: sem conseguir mover os braços, Ferona sequer consegue remover o presente.  O fantasma sorri para ele. Parece que tudo estava planejado.


Agora munidos com o conhecimento de Roteiro, o Espírito da Enciclopédia poderá nos levar a uma jornada bastante fria perto do Papai Noel. Nessa segunda postagem, iremos trocar uma ideia a respeito da herança dos clássicos e dos problemas que descrições exageradas trazem para a melhor compreensão da trama.

Aliás, eu sugiro pegar um chocolate quente. Afinal de contas, as coisas já começaram a esfriar — no melhor sentido natalino, é claro.


Hora de embarcar mais uma vez!





Sem conseguir se mover, Ferona toma o assento ao lado do Espírito da Enciclopédia. O fantasminha, sem tirar o amigável sorriso do rosto, dirige seu olhar para a janela ao seu lado. E, lá fora, somente enxerga a escuridão.

No outro oposto, temos as descrições dos escritores barrocos. Essas moças e rapazes almejam uma posição superior na escala imaginária das narrativas, escrevendo de maneira rebuscada e desnecessariamente complexa. Descrições exageradas frequentemente revelam uma vaidade intrínseca do autor. É aquele desejo de ser melhor, de fazer mais bem feito, de se revelar superior a tudo o que já lera por aí. Ou, ainda, é o anseio de se tornar tão grande quanto aqueles nos quais se inspira. Os escritores barrocos são frequentemente aqueles que tomam por base um autor clássico, com estilo característico de sua época. Mas o problema é: nós não estamos no século XIX.

   À frente havia um edifício de médio porte com um logo holográfico vermelho com as palavras Hell:Fire no topo. O prédio tinha uma leve curvatura cônica e ao chegar no telhado possuía cerca de cem metros de diâmetro. O telhado era plano, e não era usado como área de pouso, mas como área de observação exclusiva à classe alta. Pessoas comuns não conheciam tais elevações, e, se conhecessem, provavelmente sofreriam do mal das montanhas. A área em questão também era cercada por uma pequena grade metálica. Fora isso a única estrutura no espaço era a passagem que servia de acesso ao telhado. A mesma ficava localizada no canto norte da área e tinha um formato retangular como um pequeno contêiner. 

A primeira regra das descrições é: se não importa, retire. Sabendo disso, vamos dar uma olhada no trecho acima. Comparando o objeto à descrição, é até que uma quantidade razoável de linhas para descrever um prédio. Exatamente. É muita linha sendo perdida para descrever algo que, acredite em mim, será usado apenas em uma cena posterior e com a única finalidade de abarcar alguns personagens. Hell:Fire? Sem importância. Curvatura cônica (que ainda não conseguimos imaginar)? Mero detalhe estético, talvez importante para destacá-lo dos outros; se eles tivessem sido citados. Telhado plano? Claro. O resto é somente o que prédios normais possuem. 

Veja como diversas informações foram colocadas ali para aumentar o tamanho e, na cabeça do autor, possibilitar uma maior imersão. Mas é um prédio. Descrever prédios não causa imersão. Falar sobre a sensação que eles causam, sim. Falar de curvatura é pouco importante quando se pode destacar outro aspecto, como a grandiosidade ou o caráter economicamente superior da construção.

Tolkien descrevia a copa de suas árvores de maneira magistral. Passava longas páginas revelando o dia a dia de seus personagens. A cada gota de água, um parágrafo. Dostoiévski, em Os Irmãos Karamazov, dá toda a atenção possível para a construção dos quatro personagens principais de sua história através da utilização de uma narração tanto objetiva quanto frondosa, levando a coisas como um parágrafo ocupar mais de uma página. Seja Tolkien, Dosto, Machado ou Eça de Queiroz: todos os escritores são pessoas de seu tempo.

O trem para e os dois rapazes descem, ainda que um deles tenha um pouco mais de dificuldade. A estação é muito parecida com anterior, suspeito dizer até idêntica, se não fosse pela espessa camada de neve que cobria a paisagem de branco e as estalactites geladas que pendiam no telhado. O único lugar não coberto é o banco em frente aos trilhos, no qual o espírito e o escritor tomaram assento. O primeiro parece empolgado para continuar a conversa e ocupa um espaço considerável no banco, enquanto o segundo se abraça para tentar ficar um pouco mais quentinho.

— E o que isso quer dizer? Oras, que cada um deles acompanha as tendências de sua época. A prosa de cada um deles continha elementos do momento histórico, da cultura, da geografia e das vivências de cada um; assim como a sua prosa também o faz. Sua voz de escritor nada mais é do que um produto de diversas variáveis que convergiram sobre você. É muito mais complexo e abrangente do que um mero anseio de fazer igual ou melhor: é questão de liberdade.

(D)escrever é um ato que pode levar a dois caminhos: à criação compartilhada ou às algemas absolutas. Descrições exageradas entram nessa última categoria. Quando dissemos até mesmo o grau de incidência dos raios de luz sobre o rosto do protagonista naquela determinada hora, naquele determinado dia, naquele determinado quarto, com aqueles e aqueles objetos dispostos dessa e dessa maneira... Tudo fica monótono demais. Você pode até ter a ilusão de que conseguiu transmitir a imagem perfeita, mas logo o leitor vai se esquecer do que você disse. Isso porque, perceba: você até pode ter mostrado, mas o leitor não viu. Mas ele não viu porque não quis, ele não viu porque você não o soltou das algemas — ou do suéter apertado.

Enquanto lemos, o texto se reconstrói. Durante essa reconstrução, é preciso que o leitor se veja perdido e encantado com o que se apresenta a ele. É dessa vontade de exploração que surgem: a inspiração, a vontade de continuar lendo e até mesmo sua aprovação aqui em nossa plataforma. Esse anseio por respostas não vai surgir somente com você escondendo quem é o grande vilão da trama. Isso é somente uma das coisas e, talvez, das menos importantes no campo descritivo. Deixar o leitor pensar sozinho é o que mais interessa: e é o que descrições enciclopédicas justamente não fazem.

Quando o narrador utiliza pontos específicos para chamar a atenção, ele está se valendo de sua arma mais importante: a dúvida. Em uma prosa qualquer, o elemento que causa mais euforia é aquele bem na fronteira entre o crível e o inacreditável. Aquele ponto em que dois campos convergem e divergem, no qual é possível ser tanto uma coisa quanto outra. Essa escolha cirúrgica da exposição é uma das coisas que prende o leitor até o fim da página. 

— Veja só, meu caro. Vamos falar de Dostoiévski de novo. Esse grande nome passa grande parte de seu livro “Os Irmãos Karamazov” expondo as personalidades de seus personagens através de inúmeras situações. O santo, o ateu, o bastardo e o militar se encontram e se desencontram muitas vezes. Até que, em determinado momento, um evento abala o que já não estava muito bem alicerçado: o pai, Fiódor Karamazov, é encontrado morto. Dmitri, o mais velho dos quatro, já revelara seu ódio para com seu genitor durante toda a trama e até mesmo já tentara matar seu pai outra vez. Mas ele não podia ter cometido o crime. Ele não estava mais lá naquele momento. Isso Dostoiévski nos mostra, nós presenciamos a cena. Ou seja, o assassinato aconteceu depois de sua partida. Porém, é aí que o escritor para de nos revelar o acontecido e deixa a dúvida do ar. Qual dos irmãos — se é que foi um deles — matou Fiódor? Todas as evidências apontam para Dmitri, mas sabemos que não foi ele. Ou será que não?”

Aos poucos, o suéter começa a ficar mais frouxo. Encantado pela experiência do fantasma rechonchudo, Ferona percebe que talvez possa existir um ponto de convergência entre tudo aquilo que ouvira até agora. Aos poucos, tudo parece fazer sentido.

Por isso, ainda que sua descrição seja estonteante, ela pode pecar ao revelar demais do que não precisaria ser mostrado: ou por irrelevância ou por pressa. Se determinada questão não apresenta qualquer relação forte com a trama, deixe-a de lado. Faça com que o leitor preencha esse espaço vazio sozinho. Permita-se construir o texto em conjunto com quem te lê. Cor do cabelo, cor dos olhos, estilo da roupa, tipo de barba, tamanho do sapato e assim por diante; na maioria das vezes, esses detalhes não precisam ser descritos em conjunto com uma grande ficha de RPG. Mas há exceções. Na saga A Torre Negra, pouco conhecemos do protagonista Roland Deschain. Uma das características mais marcantes do personagem, porém, é apresentada em momento oportuno: os olhos azuis de Roland contrastam com sua aparência grosseira, ríspida e suja; sendo o que mais atrai a atenção de todos em seu caminho — inclusive de nós, leitores. E o autor sabia disso. 

E, também, não tenhamos pressa. Você não precisa começar falando sobre como seu mundo surgiu e de todas as lendas míticas que o cercam. Talvez deixar isso mais para frente caia melhor, afinal, após revelar pequenos outros detalhes até aquele ponto, você poderá condensar mais a informação e encontrar um equilíbrio melhor. Mas também há momentos em que devemos pesar um pouco mais a mão, tanto no teor quanto no tempo. A tão comentada contextualização espacial é um elemento-chave de qualquer imersão e não pode ser deixada de lado ou reduzida demais. Vamos dar uma olhada na descrição abaixo, retirada de 2001: Uma Odisseia no Espaço.

“Uma teia ou rede metálica de brilho fosco, com centenas de quilômetros de extensão, cresceu do nada até preencher todo o céu. Espalhadas ao longo de sua superfície de tamanho continental, havia estruturas que deviam ter o tamanho de cidades, mas que pareciam ser máquinas. Ao redor de muitas delas, reuniam-se dezenas de objetos menores, dispostos em fileiras ou colunas organizadas. Bowman havia passado por diversos grupos até perceber que eram frotas de espaçonaves. Ele estava voando sobre um gigantesco estacionamento orbital.”

— Uma descrição decente. Não é do tipo que fala muito, mas não precisava também. Veja: é fácil imaginar um grande amontoado de metal em formato de teia de aranha aparecendo no horizonte. Depois, também é fácil imaginar que cada pedacinho daquele era uma espaçonave. Não precisa contar quantas janelas cada uma tem ou com o que elas se parecem. Não é importante. Porém...

Descrições nem sempre vão conseguir ser tão pequenas. Se o que você estiver mostrando for muito importante, necessário e complexo; as coisas podem sair de controle. Universos mágicos de fantasia, por exemplo, frequentemente apresentam páginas de descrição a fio. Afinal, é necessário mostrar para o leitor — em termos objetivos — uma nova realidade, talvez extremamente diferente da realidade. Porém, vamos lembrar do preceito antigo: se fala demais, o leitor ouve de menos. Se surgir essa necessidade, pense com calma. Tente encontrar maneiras de fazer sua descrição mais enxuta (e não digo parágrafos de uma linha!), sem perder a graça ou a objetividade. E, quem sabe, você livre seu leitor desse suéter que não se solta nunca mais.

O apito do trem soa mais uma vez. Porém, antes de Ferona embarcar, o Espírito da Enciclopédia entra em seu caminho e lhe dá um forte — e quente — abraço. Despedindo-se, o homenzinho gordo acena de lá da neve. Dessa vez, mais nenhuma palavra é dita. 

De pé na escada, antes de embarcar, Ferona percebe que não há mais nenhum passageiro, ao contrário das paradas anteriores. Somente um espírito rechonchudo que agora está sentado no banco e contempla o grande trem de ferro. Da cabine, surge uma voz firme e imponente:
— Suba. Você será o único aqui dentro a partir de agora.

Ao se dirigir ao seu vagão, o escritor percebe que a porta não abre. Mesmo após muitas tentativas e empurrões, nada acontece. Porém, ao olhar para trás, vê que a porta para a cabine do maquinista permite sua passagem. Sem saber o que esperar, Ferona resolve seguir adiante e ser o copiloto de sua jornada até a terceira e última parada.




Talvez você goste destas postagens

Nenhum comentário