Escrever sem inspiração: apenas um cara no porão

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No mundo da arte, há um mito muito comum. Ele vem sendo transmitido por diversas gerações, e a maioria das pessoas acredita piamente nele, sejam elas artistas, entusiastas ou pessoas comuns: até mesmo estudos foram feitos para comprovar sua veracidade. Entretanto, logo ele se provou menos viável (nem é tanto questão de ser verdadeira aqui): os artistas precisavam ganhar dinheiro. Assim, depender da musa inspiradora para conseguir produzir não era mais uma opção

Nesta postagem, vamos conversar um pouco sobre como se escreve, dar alguns toques para quem está começando — ou pensando em começar — e, como servimos o combo completo, ainda iremos discutir sobre como entrar no mundo da escrita do jeito quase-certo. Ferona, arregace essas mangas: está na hora de aprender a não mais depender da sua musa inspiradora.


Escritores, móveis e musas inspiradoras
Para escrever decentemente, você precisa compreender duas coisas: que todo escritor é um arquiteto e que não se pode fazer uma casa sem fundação. O trabalho de escrever é basicamente utilizar seus móveis, como ortografia, gramática, detalhes e recursos de estilo; da melhor maneira possível, para agradar seu Leitor Ideal e contar de uma vez o que você quer contar. Entretanto, para que isso seja possível, é necessário um arquiteto competente: não dá para fazer uma história bem-feita com um escritor ruim. E, sendo sincero, é raro um escritor ruim se tornar um escritor decente da mesma forma que um escritor decente se torna um incrível. O que pode acontecer é um arquiteto competente e esforçado se tornar um bom arquiteto. 

Assim, a habilidade para escrever não é um pedaço de concreto de uma tonelada. Se você não for suficientemente competente para conseguir se sentar na cadeira e trabalhar para conseguir um bom texto, não adianta. Pode ir fazer outra coisa, tipo jogar Pokémon ou assistir um anime cult dos anos 90. Um bom texto, um bom romance, uma boa novel não se constrói como em um passe de mágica. 
A musa inspiradora dos escritores (e da maioria dos profissionais) competentes é um cara de meia-idade com cara de cansado e asinhas que não voam mais. É um cara que te olha e te odeia só por você pisar no porão sagrado dele. Mas você tem que descer lá, afinal, ele tem a magia que você precisa para continuar. 

Você precisa mobiliar todo o porão para que ele consiga viver ali. É justo que você tenha que fazer todo o trabalho duro enquanto ele conta os tijolos da parede, folheia seus mangás e finge que você não existe. Mesmo que ele não pareça dos melhores, ele ainda é a fonte da sua inspiração e, acredite em mim, ele tem algumas coisas que podem mudar a sua vida — talvez nem tanto, mas dizem que é por aí.

Do começo, a leitura e a escrita
E trabalhar duro, para um escritor, pode se resumir em dois verbos, um conectivo e um advérbio: ler e escrever muito. É por isso que alguns de nossos feronas acabam reprovados quase que na mensagem. Quando nos dizem que “Essa é minha primeira novel” ou “Leia e me diga o que acha”, está nos dizendo, na verdade “Eu não escrevi muita coisa e não li muita coisa também. Pode me dizer se estou no caminho certo?”. De verdade, fico muito grato que você deposite esse tipo de confiança na gente, mas esse não é nosso papel: a gente está aqui para aprovar ou reprovar você, pelo menos em um primeiro momento. Quem tem que nos dizer se está bom ou não — e que somente vai conseguir isso indo além da primeira novel — é você.

Mas não fique bitolado tentando ler a estrutura de toda e qualquer frase, parágrafo, personagem e enredo. Você pode acabar matando seu gosto pela leitura assim, vá com calma. Leia o que você gosta de ler e vai aprender naturalmente com isso. Se você acabar lendo algo ruim, como eu com um livro infanto-juvenil sobre piratas, vai acabar aprendendo como não fazer uma história: nunca que eu vou me atrever a fazer algo com piratas ou, pelo menos, não daquele jeito.

Se você acabar lendo algo bom, vai aprender a como construir uma narrativa decente, personagens reais e interessantes, conflitos que prendem, diálogos que revelam — uma grande surpresa para mim, por exemplo, foi Hai to Gemsou no Grimgar, que tem a narração e os diálogos como ponto forte. Ler coisas boas faz bem para os olhos (seus e nossos).

E se você acabar encontrando algo muito bom, pode se sentir humilhado; faz parte do processo. Sentir que você nunca vai fazer algo daquele jeito pode ser seu combustível para mirar mais alto cada vez mais e, assim, alcançar lugares, criar histórias, situações, descrições, diálogos e personagens que você nunca achou que conseguiria.

Mesmo quando não há ninguém ouvindo (ou lendo, ou assistindo), todo esforço é digno de aplausos.

Stephen King


Quanto mais você lê, menos chances tem de fazer papel de bobo na escrita e, assim, de ser rejeitado na avaliação. Mas, no fim das contas, o que importa mesmo é que você aprenda a escrever bem — e do seu jeito.


O ambiente e o que escrever
Ninguém suporta trabalhar em um ambiente cheio de intromissões, com portas abrindo e pessoas conversando. Antes de começar a escrever, tente se afastar ao máximo desse tipo de lugar. Ao contrário da leitura, a escrita não flui muito bem em ambientes que não são nossos. Até você conseguir um lugar só seu, você vai perceber que o processo será um pouco mais difícil do que o planejado.

Se quiser — e tiver tempo para — começar seriamente, primeiro comece fechando a porta. Escreva de portas fechadas e, se possível, sem maiores perturbações. Ou seja, nada de televisão, videogame, janela que dá para o Bosque Encantado ou um guarda-roupas de madeira mágica.  A porta fechada te mantém alheio ao mundo e preso no próprio universo que você está tentando construir agora. Pode ouvir música também, desde que você já a conheça; caso seja nova, você corre o risco de ficar se prendendo à letra e não às letras.

E, se possível, tente ter um horário fixo, nem que seja somente meia hora no começo. Uma hora em que você pode entrar no seu ambiente todos os dias e bater sua meta: vamos começar com poucas palavras por dia, algo como mil, se você quiser colocar um número. Mas pode fazer as coisas no seu ritmo até pegar no tranco. Isso mesmo. Escreva sem ter inspiração. Não espere por ela. Seu trabalho é fazê-la saber que você estará ali, na maioria dos dias, e que ela poderá chegar quando quiser. E que, mesmo se não chegar, você não dependerá dela para algumas coisas.

Contudo, sobre o que você vai escrever? Simples: sobre o que você conhece e gosta de ler. Você trabalha na empresa do seu pai e gosta de um mistério? Pode arriscar um assassinato empresarial. É estudante de História e gosta de ficção científica? Que tal viagem no tempo? É claro, não fale sobre o que você faz, mas use esse conhecimento ao seu favor — até porque ninguém quer ler o dia a dia de um estudante ou um administrador, convenhamos.

O que você sabe, o que você viveu, o que você pensa é único seu. Seja corajoso e encontre alguma coisa aí que te ajude na construção do seu texto — tem que ter alguma coisa! Estenda o mapa da sua vida e procure pelo que pode ser usado ao seu favor (sem discorrer sobre e sem auto-inserção), depois volte e conte para a gente o que você encontrou.

Nós, seus leitores, queremos algo que nos fascine (Caramba, isso é genial); nos impulsione (O que vai acontecer agora?) e nos mantenha virando as páginas (Eu acho que ele morre agora, hein). Esse processo de fascinação, impulso e finalização é somente possível quando há identificação do leitor por parte das situações, dos personagens, das crenças que ele mesmo possui. Entender o que você deseja é essencial para alcançar um texto coeso.

No começo, você vai perceber que seu estilo será bastante parecido com o que você mais lê, sejam novels de fantasia, livros de mistério ou mangás de culinária. Fique tranquilo: isso significa que seu estilo está se construindo e ele logo irá tomar forma própria. Com um estilo em construção, uma bagagem de vida, uma porta fechada e um cara no porão você estará pronto para começar a entrar no grande — e controverso e delicado e rude — mundo da escrita. 

Seja bem-vindo!




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