Escrevendo histórias de horror cósmico

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    A emoção mais primitiva do ser humano é o medo. E o medo mais primitivo é o medo do desconhecido. Essas duas proposições formam a base do que hoje denominamos de horror cósmico, um subgênero da ficção de terror que trabalha com a descoberta da insignificância humana perante a um universo insano e desconhecido. No horror cósmico, os personagens têm sua realidade rompida ao perceberem que as regras pelas quais estão vivendo não passam de mentiras, meras alegorias que tentam esconder os horrores que habitam além da compreensão humana

    Na postagem de hoje, conversaremos sobre insanidade, medo, curiosidade e muitos outros elementos que rondam o horror cósmico. Se acha que está pronto para embarcar nessa, basta Ler Mais!



       A narrativa de horror cósmico parte do princípio de que a humanidade está muito errada sobre algum aspecto do universo. Geralmente, essa Grande Mentira que os humanos criaram para si mesmos esconde uma Grande Verdade, um fato tão terrivelmente insano que qualquer um que entra em contato com ele nunca mais volta a ser como era antes. Nesse universo, o desejo de buscar conhecimento é a pior maldição que pode recair sobre alguém.

    Portanto, personagens de narrativas cósmicas possuem objetivos claros, mas totalmente ilógicos quando colocados à frente da Grande Verdade. Ainda que o personagem busque alguma coisa, ele provavelmente encontrará algo diferente e muito pior do que seria capaz de imaginar. Nessa busca incessante por responder perguntas, a realidade conhecida pelo personagem passa por mudanças radicais. Geralmente, mudando pra pior.

A Grande Verdade sobre o Mundo


    Horror cósmico não é sobre mudar: é sobre descobrir. Nos universos de horror cósmico, sempre há um grande segredo escondido atrás das cortinas da realidade: uma Grande Verdade, algo tão difícil de ser digerido que está selado por runas antigas, enterrado nas profundezas do oceano ou escondido logo ali atrás da porta. O mundo sempre conteve essa Grande Verdade, mas ninguém fora capaz de desvendá-la até a história começar.

    Aliás, vamos ajustar nosso dicionário antes de continuar. Quando eu me referir ao conceito de "Mundo", entenda como se eu estivesse falando de todo o campo de ação no qual os personagens existem. Em outras palavras, usaremos "mundo" para descrever todos os locais importantes da narrativa no qual os personagens podem agir: casa, escola, trabalho, ruínas maias, oceano Atlântico, Estreito de Gibraltar, o continente Americano, o planeta Terra, nossa galáxia... E assim por diante. 

    Você pode muito bem escrever uma história de horror cósmico que se passa unicamente no quarto de uma criança. O mundo, nesse caso, seria o quarto. Por outro lado, você pode escrever uma história na qual os personagens viajam pelo mundo, solucionando enigmas ancestrais em ruínas de civilizações perdidas. Nesse caso, o mundo são todos os lugares visitados pelos personagens. Se o grande mistério dessa história de viagens enigmáticas for um culto milenar que está tentando ressuscitar uma entidade cósmica cheia de olhos e bocas, todos os lugares influenciados por essa entidade também farão parte do Mundo (nesse caso, provavelmente o Mundo da narrativa seria o universo como um todo, já que estaríamos tratando de uma coisa extraterrestre). Estamos entendidos? Se ficou alguma dúvida, pode colocar nos comentários.

    Bem, vamos prosseguir. Como a narrativa de horror cósmico lida com a descoberta de algo difícil de ser digerido, é importante que você planeje sua história de modo que o leitor também descubra o que os personagens descobrirem. Uma ferramenta muito legal de ser usada nesse tipo de história é o foreshadowing: a arte de dizer que algo vai acontecer sem que fique óbvio demais. Assim como o personagem lentamente se aproximará da Grande Verdade (ou parte dela), o leitor deve ser capaz de perceber que algo está errado, mesmo que ainda não saiba apontar o quê. Utilize esse recurso para incitar o leitor a pensar, a criar suspeitas. Dessa maneira, o leitor se concentrará em cada aspecto da narrativa, buscando respostas para algo cuja verdadeira forma será muito maior — e com implicações muito mais profundas do que ele imaginou.

    Quando o descobrimento da verdade se alinha com o fluxo e tom da narrativa naquele momento, o horror cósmico brilha. Aproveite os acontecimentos ligados ao mistério da narrativa para dar pequenos detalhes da Grande Verdade, criando uma tensão crescente sobre algo inexplicável. A descoberta do grande mistério não deve acontecer de uma vez, mas diluído no restante da narrativa. Assim, quando o mistério principal for desvelado por completo, a Verdade também aparecerá — e fará cabeças explodirem (talvez não-metaforicamente). 




À caminho da insanidade


    Ao analisar narrativas de horror cósmico, constantemente encontramos um elemento em comum: a insanidade. Em linhas gerais, o termo "insanidade" descreve a perda total (ou quase total) das capacidades mentais de alguém. É um estado de completa (ou quase completa) separação da realidade, quando o imaginado e o verdadeiro viram uma coisa só. 

    Geralmente, o estado de insanidade se inicia com a descoberta de algo impossível de a mente humana processar. Uma falha tão grande na realidade do sujeito que o cérebro humano escolhe rejeitar a realidade em si mesma para se proteger dos horrores que habitam a escuridão. Entretanto, existem várias maneiras de isso acontecer: desenvolvendo fobias/manias relacionadas ao evento traumático; se isolando de tudo o que lembra o evento; desenvolvendo vícios e assim por diante. Além disso, o personagem pode abraçar a insanidade: afundando em livros e tomos antigos a respeito do evento traumático; procurando por novas oportunidades de mergulhar na insanidade; usando drogas para recriar a experiência e muitas outras coisas.

    Mas como levar um personagem à insanidade? Fisgue-o por suas aptidões. Se o personagem for curioso, instigue-o com perguntas. Se o personagem não for curioso ou se o medo for maior que a curiosidade, coloque essa desigualdade à prova: crie uma situação em que a balança entre curiosidade-medo possa mudar. Você pode aumentar a curiosidade do personagem quando vincula elementos do enredo à história daquele personagem, como também pode diminuir seu medo através da redução temporária de perigos ou da presença de um amigo mais corajoso que empurre o personagem adiante.

Personagens falhos e finais amargos


    Personagens de horror cósmico se distanciam do ideal de personagem perfeito. Eles não são entidades gregas, cheias de benevolência, calma, sabedoria e amabilidade. Na verdade, esses personagens tendem a ser facilmente levados por sua curiosidade, por seus ideais, pelo medo e por sua posição social — conflitos minúsculos perante à grandeza do desconhecido. Esse é um dos temas mais relevantes de histórias de horror cósmico: a futilidade da existência humana. Os escritores desse gênero costumam usar do sobrenatural para deixar isso ainda mais evidente, mas no final das contas, eles também falam das nossas experiências como seres humanos no mundo real.

    Devido a esse aspecto quase existencial dos horrores cósmicos, é de se esperar que os finais dessas histórias não sejam realmente felizes. No fim dessas narrativas, é comum que encontremos os protagonistas mortos, insanos, ou insanamente mortos, ou chamados de loucos por aqueles que não desejam escutar o Chamado do além. E assim prosseguimos.  

    Se você nunca consumiu histórias desse gênero antes, pode parecer que um final trágico seja contra as regras. Os personagens não deveriam superar seus medos e salvar o planeta? Lembre-se que estamos falando de personagens falhos cujas vidas mudam completamente ao descobrirem o segredo horrível que a realidade tentava encobrir. E se a sua preocupação está na reação dos leitores com esse final difícil de digerir, acalme-se: muitas vezes, o leitor sabe o que esperar.

    Quando escrever horror cósmico, lembre-se que o leitor não espera que o protagonista escape de uma alcateia de lobos demoníacos ou viva feliz depois de se deparar com seus entes queridos sendo devorados por criaturas bizarras. Leitores de horror cósmico já chegam esperando que algo muito grandioso sobre o Mundo será descoberto. E que, no final das contas, o protagonista sofrerá tudo o que tiver de sofrer.

    Se você quiser finais felizes e superação constante de adversidades, talvez esse gênero não seja para você. Mas se você estiver interessado em evocar horrores mais profundos do que uma história de terror convencional, eu te aconselho a continuar estudando sobre o horror cósmico. 

    Pense em seus pesados mais horripilantes e traga-os para sua história! Crie o abismo mais obscuro com a resposta mais desejada, mexa com a balança entre medo e curiosidade. Teça a narrativa de modo que a loucura ou a morte sejam as únicas (ou algumas das únicas) maneiras de reagir ao que acabou de ser descoberto. E uma vez que esse conhecimento proibido tenha sido trazido à luz do dia... 

Acredite, não há mais volta.



Obras para estudar horror cósmico

Aviso: As obras a seguir tratam de temas sensíveis. 


A cor que caiu do céu, por H.P Lovecraft (1927).
Um meteoro cruza os céus noturnos de Arkham e cai em uma fazenda, trazendo consigo mudanças que nunca poderão ser revertidas.

A sombra de Innsmouth, por H.P Lovecraft (1936).
O livro conta a história de um jovem que, durante uma viagem pela Nova Inglaterra, vê-se obrigado a passar uma noite em Innsmouth – o vilarejo portuário em ruínas que não consta em nenhum mapa e esconde um mistério tão profundo quanto as águas que o banham.

O enigma da Falha Amigara, por Junji Ito (2002).
Um terremoto revela uma parede nas rochas com diversos buracos no formato de silhueta de pessoas. Como se não fosse suficientemente bizarro, algumas pessoas são atraídas ao local e descobrem que há um buraco com seu formato exato. Olhar para elas é um convite para ver o que há além.

O Farol (2019).
Thomas Wake (Willem Dafoe), responsável pelo farol de uma ilha isolada, contrata o jovem Ephraim Winslow (Robert Pattinson) para substituir o ajudante anterior e colaborar nas tarefas diárias. No entanto, o acesso ao farol é mantido fechado ao novato, que se torna cada vez mais curioso com este espaço privado. Enquanto os dois homens se conhecem e se provocam, Ephraim fica obcecado em descobrir o que acontece naquele espaço fechado, ao mesmo tempo em que fenômenos estranhos começam a acontecer ao seu redor.

Vídeo: O Racismo de Lovecraft: Subvertendo o Terror Cósmico, por Bruno Tessaro (Nautilus)

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6 comentários

  1. Interessante, o problema é que eu sou medrosa.
    Mas se qualquer dia for sair da minha zona de conforto literária, vou estudar esse gênero.

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    1. Quando essa hora chegar, pode contar a gente para sanar as dúvidas (e ajudar nos momentos de medo). :)

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  2. Caraca, gosto muito do gênero! Valeu mesmo por trazer um post sobre esse gênero, vai estar me ajudando muito nas minhas histórias!

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    1. Muito obrigado pelo comentário! Quem sabe não tenhamos mais postagens sobre esse gênero no futuro?

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  3. Eu fico com frio na espinha só de ler "Falha Amigara", Vong. Das coisas que me deram medo nessa vida... essa foi uma das piores, sem dúvida.

    Postagem sensacional! Traga mais coisas sobre o macabro, Vong. Embora eu seja autointitulado um escritor de fantasia, minhas tendências literárias ficam bem em casa no obscuro.

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    1. Fico muito feliz que tenha gostado da postagem, Fim! Isso me deixa mais animado para fazer mais postagens sobre o gênero - e recomendar mais obras que tangenciam o oculto... Afinal, para enfrentá-lo, precisamos entendê-lo (ou morrer tentando...).

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