Primeiro, a primeira página

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É oito ou oitenta. É pau ou pedra. Ou o leitor se engaja na sua primeira página, ou ele desiste de acompanhar seus personagens. Parece cruel, mas ninguém aqui está ligando para o grande mundo que você criou se ele não se apresentar de maneira minimamente interessante. Você também não ia querer saber sobre uma pessoa se ela chegasse em você e ficasse falando do quão entediante a vida dela é. Se não é legal, a gente não dá uma chance. É assim que funciona.

Então, como saber se a gente (como site) vai querer publicar sua história? Ou a gente (como leitores) vai querer continuar acompanhando seus personagens? Simples: garanta uma boa primeira página e metade da sua vida já vai ter sido resolvida. Por isso, largue essa garrafa de refrigerante e preste atenção; o destino da sua história pode começar ou acabar bem aqui.

Quer uma obra com começo mais marcante que Steins;Gate?


O PRIMEIRO PARÁGRAFO


O maior segredo dos inícios é único: ele deve fazer você se interessar imediatamente pela história que está por começar. O papel do autor é fazer com que o leitor fique com aquela pulga atrás da orelha, que se pergunte o que está acontecendo, que deseje saber mais sobre aqueles personagens e/ou aquela situação. Quer ver? Vou te mostrar um exemplo de um clássico da literatura (nada melhor para aprender), que também é um dos meus livros favoritos.

Quando certa manhã Gregor Samsa despertou, depois de uma noite mal dormida, achou-se em sua cama transformado em um monstruoso inseto.

O início emblemático de A Metamorfose nos responde algumas perguntas. Ele nos diz quem é o personagem principal (Gregor Samsa) e qual o conflito principal (Gregor se transformou em um inseto monstruoso). Porém, por que isso aconteceu? E a partir de então, o que ele fará? Como alguém pode viver desse jeito? É o que Kafka nos revelará nas próximas páginas.

Perceba que essa abertura introduz, além do personagem e do conflito, o tema da história toda: como lidar com essa súbita transformação anormal dentro do mundo comum. Para ilustrar esse tema e o próximo que vamos conversar em seguida, eu te convido a ler mais um dos inícios kafkianos. Dessa vez, vamos conhecer a primeira frase de O Processo.

Alguém devia ter caluniado Josef K., visto que uma manhã o prenderam, embora ele não tivesse feito qualquer mal. 

Espera, um homem foi preso sem qualquer justificativa? É isso mesmo. Por essas poucas palavras, você pode deduzir que O Processo se trata, em primeiro nível, da história de Josef K. em busca da solução do seu processo (no melhor sentido judicial), como também das motivações de quem quer que tenha colocado esse peso sobre as costas do banqueiro. 

E, repare que legal: esses inícios apresentam frases marcantes. Em pouco espaço, Kafka nos coloca dentro da situação a partir de uma perspectiva que, se fosse recheada de adjetivos, perderia a essência. O Processo, A Metamorfose e outros livros do autor propõem essa contraposição ríspida entre o real e o imaginário, entre situações totalmente imaginativas (insetos e processos) em um mundo, aparentemente, igual ao nosso. Se as primeiras frases fossem recheadas de conceitos e explicações, não seria condizente com o próprio livro, com a própria proposta do escritor. Na verdade, muito pelo contrário: as frases são curtas, diretas e com esse duelo realidade x delírio bem evidente. Ao bater o olho nelas, você já sente o que está por vir.

Essa característica marcante de bons inícios é o que podemos chamar de estabelecimento de tom. Estabelecer o tom da história significa mostrar qual é o jeito mais agradável que você, escritor, encontrou para passar sua mensagem. Se sua mensagem for engraçada, é sua obrigação estabelecer um tom cômico. Se for de mistério, um tom mais nebuloso, talvez com mais incertezas ou rispidez. Se for um romance, uma high-fantasy, uma distopia; que seja. O importante é dar ao leitor o primeiro gostinho do seu mundo e de como você optou por mostrar isso pra ele.

Além de nos orientar com o contexto e estabelecer o tom da história, bons inícios também promovem a contextualização espacial (e temporal, como a gente viu um pouco com o Kafka lá em cima). Estabelecer o local dos acontecimentos iniciais da história é importante para evitar descrições abundantes e complexas mais pra frente, citando coisas que já poderiam ter sido estabelecidas lá atrás. Essa primeira página também é um espaço glorioso em que nada, até então, fora dito. Por isso, você não tem a preocupação de quebrar o fluxo da narrativa com descrições com essa aqui.

Forest Park era lindo no verão. Mal se via o céu azul cinzento de Portland para além do teto de choupos, abetos e bordos que filtravam a luz, até convertê-la em um verde-claro trêmulo. Uma leve brisa acariciava as folhas. Ipomeias e heras escalavam os troncos das árvores recobertos de musgo e sufocavam as amoras silvestres e samambaias, uma profusão de trepadeiras rastejantes que se amontoava até a altura da cintura de cada um dos lados do caminho apertado e sujo. O riacho sussurrava e se agitava, pássaros cantavam. Tudo era adorável, como se saído das páginas de Waldes, ou A vida nos bosques, a não ser pelo cadáver.

Agora, te convido a dar uma olhada no trecho acima, retirado do livro Coração Apaixonado. A primeira sentença já promove a contextualização espacial: estamos em Forest Park. Beleza, mas o que tem nesse lugar? O narrador nos conta em seguida: tetos de choupos, abetos e bordos; com luz verde-clara, brisa macia, ipomeiras e heras; frutas silvestres; caminhos tortuosos; um riacho barulhento e passarinhos característicos de uma floresta preservada. Não sei pra você, mas me parece um lugar bem bonito

Até que você chega na última parte. "Tudo era adorável". Bem, eu concordo que tudo parece adorável nesse lugar mesmo. " (...) a não ser pelo cadáver." Espera, tem um cadáver ali? Como que isso é possível? E a história se desenrola.

Eu, pessoalmente, gosto desse tipo de introdução. A surpresa com o cadáver vem do tipo de ideias que associamos às palavras parque e cadáver. No primeiro, quando pensamos em parques (florestais), é bem essa a ideia: um monte de verde, trilhas aos montes, cabaninhas legais, árvores diferentes, passarinhos coloridos, e rios batendo em pedras e espirrando água pra todo o canto. Tudo isso nos remete à calmaria, beleza, paz. Um cadáver no meio do caminho já muda o pensamento para associar elementos opostos: violência, brutalidade, caos. A partir dessa quebra de expectativa, o leitor fica mais aficcionado e desejando saber, pelas barbas do profeta, como tudo isso aconteceu. 

A última das características que fazem um parágrafo inicial interessante é a revelação de um narrador com voz forte. Um narrador que tem presença é justamente aquele que faz você ficar interessado na relação dele com o mundo, com sua perspectiva da história e, também, se aconchegar mais na cadeira enquanto dá aquele sorriso de canto de boca e pensa "Hm, isso até que pode ser interessante." Quer ver? Vamos usar mais um clássico: Clube da Luta, de Chuck Palahnuik.

Primeiro Tyler me arruma um emprego de garçom, depois enfia um revólver na minha boca e diz que o primeiro passo para a vida eterna é morrer. Por muito tempo Tyler e eu fomos grandes amigos. As pessoas estão sempre me perguntando se conheço Tyler Durden.

Perceba como o narrador já se mostra imponente e despreocupado com a moral, também bastante irritado. Ainda, temos a linda apresentação do tom da história e dos personagens que nos guiarão por ela. E, ainda em menor aspecto, uma pequena lembrança do narrador-personagem que nos ajuda a entender parte de quem ele é (sobre o quê falaremos daqui a pouco!).

Porém, se você não souber como construir um parágrafo,  essas dicas não valem de nada. Mas não se desespere: nós temos duas postagens ma-ra-vi-lho-sas, discutindo todos os aspectos dessa estrutura.



FALANDO DAQUILO


Porém, existem alguns tabus no que se refere ao início de narrativas. O primeiro deles é bem clássico e está, em partes, correto: o início da história deve ser o início dos acontecimentos. Calma, vamos discutir isso com paciência porque tem mais coisa envolvida do que somente reorganizar acontecimentos. Para isso, vamos dar uma olhada em um trecho (de tradução livre), retirado do livro High-Rise, de J. G. Ballard.

Depois de tudo, ele se encontrava sentado no balcão, comendo seu cachorro-quente. Dr. Robert Laing estava pensando acerca dos eventos peculiares que tinham acontecido naquele grande prédio durante os últimos três meses. Agora que tudo voltara ao normal, ele ficou surpreso ao perceber que não havia um início óbvio ou um ponto além do qual suas vidas começaram a mudar para esse espectro claramente mais sombrio.

Agora, vamos ver se esse parágrafo apresenta as características que apresentamos até então. Robert Laing, o personagem principal, está curtindo seu cachorro-quente enquanto pensa sobre os eventos que serão descritos na narrativa. Além disso, o parágrafo também nos contextualiza espacial (a história se passará naquele prédio) e temporalmente (nos últimos três meses). E, ainda mais, ele começa com uma frase agradável e marcante, que nos instiga a entender quem é esse cara que come um cachorro-quente logo no começo da própria história.

Porém, diferente dos outros que já tínhamos visto, esse início de história se passa depois dos acontecimentos principais. Ou seja, contemplamos o personagem em um estado de epílogo, após ter avançado e superado os obstáculos à sua maneira. Começar pelo fim da história é tentador porque, em muitos casos, o fim é precedido por uma grande batalha ou algo devastador, quando os personagens já estão em seu nível máximo de poder. Qual leitor não gostaria de contemplar esse tipo de cena épica? Então, é aí que mora o problema.

Para que você possa contar o fim da sua história no começo da narrativa, é preciso que você...  Vamos, use a lógica: é preciso que você saiba o fim da sua história. E como você pode saber disso? Planejando todos os detalhes dela; os arcos de personagem e a estrutura geral de acontecimentos. Durante o planejamento, é quando podemos realocar conceitos, mudar acontecimentos e até alterar boa parte do que achávamos ser uma história sensacional; afinal, vimos que muita coisa não faria sentido ou não se encaixaria muito bem.

Por isso, usar esse tipo de início quando ainda estamos engatinhando na escrita é muito perigoso. Você pode muito bem arriscar quando ainda é iniciante e pode, sim, sair algo legal. Porém, a maior chance é que você, das duas, uma:

  • Tire a liberdade dos personagens e a verossimilhança deles, fazendo-os perseguir um objetivo já previamente estipulado e imutável
ou 
  • Deixe seus personagens críveis e com autonomia, mas conviver com a possibilidade do desejo deles não condizer com o final idealizado e utilizado como início.
Por isso, é recomendável que você (re)leia as postagens de Planejamento Narrativo e conheça bem as estruturas:


E, relacionado a esse mito, há outro muito comum: o uso de flashbacks. Começar a história com um evento que a precede é, da mesma forma que o flashforward, bastante arriscado. Porém, acaba sendo um pouco mais simples do que a utilização do irmão gêmeo. 

Comumente romances se iniciam com narradores revivendo memórias que são essenciais para o enredo. Isso é especialmente comum em romances onde um evento único e inesquecível permeia toda a trama até o fim do livro (por exemplo, um assassinato em uma história de mistério). Quando você foca um evento através da memória do personagem, isso concede ao evento relembrado muito mais poder. Por isso, é preciso que escolha AQUELA cena. 

Você pode escolher uma cena que mostre um dilema difícil ou uma escolha arriscada. Ou, ainda, uma experiência emocional que trará consequências retumbantes para seu personagem. O importante é que a cena escolhida dê ao leitor a chance de entender o resto do livro e não seja somente uma memória, mas um acontecimento que se dá perante aos olhos de outro alguém.


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Críticas, comentários e sugestões são especialmente bem-vindos! O que achou do tema da semana? Tem alguma coisa para acrescentar? Achou algum ponto legal de ser notado? Sinta-se livre para comentar!

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5 comentários

  1. Amor à primeira vista é legal, mas nada supera Amor à primeira página. Esse post é bem mais importante do que parece!

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  2. Amei o texto! Tem dicas muito sábias e que enchem os olhos de felicidade. Até me lembram um pouco essa série de vídeos do Digibro explicando como identificar um anime bom ou ruim só pelo primeiro episódio: https://www.youtube.com/playlist?list=PLw6UBKuaMyFDf0RNDtWxsywrKk9Rx83rY

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  3. Eu tenho uma duvida: Para não ficar muito neste negocio de descrever as coisas, como por exemplo poderes eu poderia colocar nota de roda pé ?

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