Caçadores de Reprovações #5.2: Dicendis inacreditáveis

0

Tudo parecia estar dando errado. E, como vamos ver daqui a pouco, tudo realmente seguiu essa profecia. Nessa segunda parte dos Caçadores, pretendemos dar um maior foco aos diálogos e à construção de uma narrativa crível (e original), dando mais importância à função de alguns verbos que costumam levar à reprovação.

Curioso para saber quais são eles? Querendo saber o papel de narrativas originais e verossímeis? Já ouviu falar nas funções dos verbos de fala? Oras, então vá e pegue seus equipamentos; os Caçadores de Reprovações já estão batendo à porta!




O nome da obra foi modificado para não levar a maiores constrangimentos. Todos os dados dos 
autores foram omitidos e a privacidade dos mesmos será protegida.


LEGENDA

1. Vírgulas

a) Amarelo: Eliminar a vírgula sem piedade.
b) Azul: Trocar por ponto melhora o fluxo.
c) "[,]": Introduzir vírgula.

2. Marcação dos erros

a) Vermelho: Ortografia.
b) Laranja: Pontuação.
b) Verde: Descrições
c) Azul: Diálogos.
d) Roxo: Narração.
e) Sublinhado: Consideração especial.

1. DISSE ME DISSE




O primeiro grande problema do nosso texto-exemplo é o quão acreditável/ originais seus eventos são. Veja o primeiro trecho, desconsiderando os erros de gramática:

Tudo parecia estar dando errado. Desde que Hausten levantou (levantara) de manhã [,] havia sido uma corrido (corrida) contra o tempo para chegar à Grande Academia Imperial de Caçadores. Botando a baquete (baguete) que seria seu café da manhã na boca [,] ele correu o mais rápido possível pelas ruas da Grande Capital. Tudo isso, no entanto, acabou resultando em ele trombar com uma mulher no meio da rua, os peitos dela batendo [bateram] na cara [d]ele e arrancando [arrancaram] a baquete da boca dele.

Pense comigo: em quantas histórias você já não viu um personagem acordando atrasado para seu primeiro dia de aula em a) uma escola nova; b) faculdade; c) emprego e assim por diante? Aposto que já pensou em pelo menos três. Lembre-se da nossa postagem sobre primeiros capítulos e primeira página: essas primeiras linhas são as mais importantes. Mas ainda tem outro problema.

O quão crível (o quanto é possível de acontecer) é a situação de um garoto com um pão na boca, trombando com uma mulher e os seios dela, após baterem nele, fazerem o pão cair? Você pode argumentar que é uma situação cômica, então temos uma licença de comédia para exagerar um pouquinho nas coisas. Mas não faz diferença. Com ou sem essa cena, a história ia ter terminado no mesmo lugar. Se o pão caísse por ele ter tropeçado numa pedra, se ele comesse o pão, se ela roubasse o pão: ia dar na mesma. E se ia acontecer o encontro dos dois de qualquer jeito, por que tentar uma comédia sem graça — que faz seu texto perder pontos — em vez de fazer algo mais perto do mundo real (ou das regras do seu mundo)? 

Um texto crível não é aquele pautado nas regras da realidade e que segue firmemente tudo o que é do nosso mundo. Na verdade, pode ser justamente o contrário: um texto que respeite as regras do mundo fantasioso que ele construiu. Em Estrela Morta, temos um mundo fantástico com regras bem claras e que permitem a existência de certos encontros. Algumas delas são iguais ao nosso mundo, outras, completamente novas. Estranho seria se as regras do mundo de Brayan fossem totalmente iguais àquelas do nosso mundo — ainda que sejam realidades completamente diferentes





Outro grande problema é que, de cara, já podemos perceber que diversos verbos dicendi estão riscados e coloridos de azul. Para falarmos sobre o problema deles nessa trama, é importante que entendamos melhor o papel desses carinhas dentro da narrativa.

De maneira geral, vamos entender que os verbos dicendi (VD) apresentam três funções principais: de estruturar, expressar e caracterizar. Ou seja, eles auxiliam na estruturação do texto para que haja um bom fluxo de leitura e a coesão se mantenha; ajudam na expressão de ideias por meios não somente falados e, por fim, fazem o papel de reforçar o grupo no qual aquele personagem está inserido. 

Primeiro, a capacidade dos dicendis de estruturar o texto chamaremos de função coesiva. É usando os verbos de fala na função coesiva que conseguimos manter um fluxo de narrativa aceitável, mesmo que o diálogo se estenda por mais de uma linha. Vários diálogos em sequência, sem qualquer dicendi, podem até mesmo parecer vazios e cansativos, sem muita expressão também. Por isso a função coesiva é tão importante: antes de tudo, os verbos de fala estão aqui para auxiliar a narrativa a se manter constante. Eles fazem o papel de ligar uma ideia em outra, mantendo a harmonia do contexto geral.

Agora veja o nosso exemplo. Todos os verbos riscados são o mesmo: “disse”. Se a primeira das funções é de criar um texto harmônico, ligando uma ideia em outra; qual o problema daqueles verbos riscados? Afinal de contas, os VD estão justamente indicando quem disse o que está dito ali. Sem eles, seria possível entender quem disse o quê

E aqui chegamos em um ponto interessante. Não utilize os dicendi como suas muletas de diálogo. Os diálogos precisam falar sozinhos, o que significa trabalhar cada personagem para que eles expressem jeitos diferentes de emitir suas opiniões — de falar. Quando você fica refém dos verbos de fala e passa a utilizar “disse a moça”, “disse Hausten”, “disse ele”, “disse ela” e assim por diante; está matando a essência dos diálogos: de trazer seus personagens à vida. Se dá para entender que foi a moça quem disse:

— Mas o que você acha que está fazendo, pirralho?

Então você não precisa indicar, de novo, que foi ela quem disse. O diálogo está falando sozinho (não tem como o jovem Hausten se referir à diretora como “pirralho”, afinal) e isso é muito bom. Mas, como conversamos lá em cima, essa quantidade absurda de diálogos sem qualquer indicação posterior traria problemas de ritmo e de harmonia. Por isso a função coesiva se faz tão importante: escolha o momento mais inteligente para indicar quem está falando. 

Algumas vezes, um diálogo pode ser entendido como vindo tanto de um ou outro personagem, então o dicendi assume a posição de indicar qual deles emitiu a informação. Ou, ainda, você pode utilizá-los para indicar a introdução ou finalização de uma cadeia de diálogos. Fica a seu critério entender o melhor momento de usá-los.

A segunda função dos VD é a função expressiva. Essa característica ajuda o diálogo a dizer mais do que está sendo dito, complementando a frase e fechando um sentido maior, normalmente utilizando algum recurso de linguagem junto. Espera, como assim? 

— Como está indo a revisão do texto? É muito ruim?
— Pior do que ruim — sublinhou a garota.

Perceba aqui que o verbo “sublinhar” está não somente enfatizando o fato de o texto ser ruim. Na verdade, ele também se relaciona com o sentido do diálogo: em uma revisão, é comum sublinharmos termos, orações e parágrafos para fazer alguma consideração. Ou seja, “sublinhar” está tanto enfatizando (exercendo a função coesiva) quanto servindo de apoio para que o sentido original do diálogo (usando a função expressiva) seja complementado. 

No nosso texto-exemplo, não há nenhum uso expressivo dos VD. Mesmo que os verbos não fossem somente “dizer”, a carência de um jogo de palavras deixa o texto um pouco carente de técnica e diverte menos o leitor. Assim como nas descrições, diálogos que brincam com as palavras — na dose certa — são excelentes aquisições que só vêm para acrescentar.

Por fim, temos a função caracterizadora dos verbos de fala. Caracterizar uma pessoa significa dizer quais são suas principais características, como de onde ela vem, como ela é e como ela é enxergada — por si e pelos outros. Os dicendis podem assumir a função caracterizadora ao estarem ligados com a maneira de ser do seu personagem. Como nosso personagem do exemplo é um estudante desesperado, os verbos de fala que podemos utilizar para ressaltar essa informação são aqueles que se ligam com “estudar” e “desespero”. Isso significa que só vamos usar palavras como “pensar”; “gritar”; “entender”; “chorar”? Claro que não! Caso contrário, iríamos acabar no mesmo ponto onde começamos: com dicendis extremamente repetitivos!

A função caracterizadora é interessante para criar uma atmosfera mais real em volta do seu personagem, harmonizando as características dele com o restante do seu universo. Só não vá para o outro extremo: verbos que fogem muito dos tradicionais dizer/pensar tendem a soar estranhos e podem acabar com a coesão do seu texto. “Conchavar”, “escarnecer”, “ferroar”, “remediar”, entre outros verbos que você pode acabar encontrando em alguma lista por aí, devem ser evitados justamente por não acrescentarem nada — pois tendem a repetir a informação óbvia do diálogo — e, cá entre nós, também são bastante esquisitos.



Finalizando, é sempre necessário que o mundo da sua narrativa seja acreditável. Trechos como “A diretora parou por um momento, pensando com o sorriso maligno ainda no seu rosto. Depois de alguns segundos o sorriso dela alargou, colocando um pé para frente.” deixam claro que o autor não estava pensando no seu mundo como algo palpável, mas como um aglomerado de cenas de alguma série em que sorrisos podem ser malignos e alargados (e colocam um pé pra frente) para cobrir o rosto todo. É aquele papo: em vez de dizer que é um sorriso maligno (e cair nos clichês), você pode simplesmente mostrar que ela sorriu — e deixar o contexto ajudar o leitor a descobrir se ele era maligno, crível ou totalmente inacreditável.


PEGANDO A BAGUETE DE VOLTA

(Haver e fazer)
(Para aprender isso de uma vez)
(O básico da criação de diálogos)
(Sobre mesclar mundo e narrativa)
(Para sair da cama e não estar atrasado)
(Porque diálogo também conta)


Críticas, comentários e sugestões são especialmente bem-vindos! O que achou do(s) quadro(s) desse mês? Tem alguma coisa para falar sobre os textos? Ficou alguma dúvida de algum erro não comentado? Sinta-se livre para falar!




Talvez você goste destas postagens

Nenhum comentário